chuva acida

L. Lightfeather
6 min readJun 4, 2022

VI

Chuva Ácida

O ano é 2055, a água potável só é acessível às camadas mais poderosas da sociedade, onde se acessam fontes de água filtrada exclusivas com e-cards que são distribuidos somente para a elite. Os subúrbios vivem apenas com as sobras e água contaminada enquanto o crime, a doença e a violência predominam. Os miseráveis e desfavorecidos não precisam necessariamente se alimentar ou se hidratar pois em sua maioria, gastam o pouco crédito que tem em sistemas portáteis de realidade virtual que se conectam ao sistema nervoso central capazes de simular sentimentos e proporcionam diferentes tipos de metaversos digitais. Enquanto seus corpos físicos definham, a virtualidade digital se torna suas novas consciências.

A discrepância na qualidade de vida se tornou tão grande que nos níveis mais baixos e perigosos das grandes metrópoles superpopuladas por anúncios e outdoors animados em todas as direções e alturas, dentro do mais escravizado e desumano círculo do proletariado, células de resistência se formaram contra as grandes corporações e os políticos. Jovens, hackers, orfãos e artistas que foram mantidos à margem da sociedade a vida inteira, verdadeiros párias, se juntaram em um movimento de ideologia essencialmente anárquica com o objetivo de trazer luz às injustiças da necropolítica e reparação ao imprecedente impacto socioambiental promovido pelas big corps de vidro com incontáveis andares, essencialmente corrompidas pelas raízes do poder e do dinheiro.

Uma das classes mais respeitadas no ecossistema underground, os tatuadores, desenvolveram uma tecnologia de tintas fabricadas artesanalmente com água, álcool, glicerina e corantes orgânicos derivados de raíz brilhante. Químicos sintéticos e estimulantes de humor como a ADREN-ink e a SEROTO-ink eram infundidos na tinta para dar um apoio neuronal gradativo que os insurgentes precisavam para a revolução. Nanoparticulas capazes de hackear as interfaces das autoridades eram inseridas no símbolo ⓒⒶ que com uma clássica estética de blackwork, marcava o pulso de todos os membros do movimento ʞɹɒuɒɹɘdʏɔ.

[25 de Maio de 2055 / 21:00] A missão delegada pela matriz da revolução tinha o único objetivo de sequestrar uma carga de 220 toneladas de água tratada sendo transportada por uma frota de 10 caminhões automáticos. Designada a capitã da subdivisão Mayhem, Past esperava no ponto de encontro com sua equipe de ƨʞɹɒuɒɹɘdʏɔ escolhidos a dedo próximo à entrada da cidade, com muralhas colossais que se estendiam em uma grande parede de plasma fortemente guardada pelos neocops que controlavam a entrada e saída de todos os cidadãos e veículos. Como resultado da destruição ambiental, o massivo uso dos combustíveis fósseis derivados de hidrocarboneto e a adoção em massa de fontes energéticas nucleares, todo território sem a proteção das domas plasmáticas como as das grandes metrópoles era inabitável devido às anomalias climáticas que degradavam todo e qualquer tipo de vida orgânica graças à imensa quantidade de dióxido sulfúrico e radioatividade gama na atmosfera.

Motos elétricas espalhadas ao redor de um posto de combustível abandonado esperavam a ordem de início da operação enquanto o pelotão se agrupava ao redor de uma fogueira e preparavam seus equipamentos em meio a conversas, música, risadas e garrafas de hidromel sintético. Um pouco distante, dentro das ruinas grafitadas e entre algumas prateleiras tombadas do que costumava ser uma loja de conveniência, com a luz do fogo pobremente iluminando aquele interior, Past se encontrava meditando de olhos fechados em posição de lótus com as mãos descansando nas pernas e os dedos entrelaçados enquanto se preparava mentalmente para entregar essa missão à sua Comandante-chefe sem casualidades ou perda de sequer um litro de carga, pois sabia que muitas pessoas dependiam do triúnfo daquela noite para sobreviver.

Vestia seu icônico sobretudo à prova de acidez e radiação, com uma estética de plástico fosco cinza, preso por uma cinta laranja fluorescente na cintura e sua cabeça estava coberta com um capuz de couro preto. A calça baggy texturizada com uma camuflagem de glitch de cores tons de cinzas e preto era feita de uma fibra ecológica cujo a temperatura se adaptava ao ambiente e tinha incorporado em ambas as pernas, bolsas para seus gadgets eletrônicos e um coldre para sua pistola silenciada “Eros”, carregada de munição etérea com uma tecnologia de rastros neon de tom roxo escuro e pulsos eletromagnéticos capazes de desativar eletrônicos no impacto. Cartuchos se encontravam nos bolsos do sobretudo e em seu pulso, cobrindo a sua tatuagem ⓒⒶ, vestia um relógio vintage com hardware adaptado e um software de IA que ela mesmo havia programado para que servisse como sua assistente de combate.

— Alexa, calcular geolocalização da frota e tempo estimado até a chegada no ponto de conflito.

— ETA de 10 minutos, Past. Está preparada?

— Eu nasci pronta para isso.

— O conflito é mesmo necessário? A guerra nunca muda, os inocentes vão sempre pagar pelos pecadores, os custo serão as vidas, e as lágrimas… serão sempre maternas.

— Poder sem amor, se torna brutalidade Alexa. A maior dívida desses malditos bruxos capitalistas de alma mal higienizada é falhar em entender até onde a bondade está disposta a lutar na imensurável balança da justiça. Minhas balas carregam a esperança de todos os corpos celestiais e hoje eu acordei com a mais pura intenção de cobrar o passado.

— Que assim seja Capitã, e que uma semente seja plantada no bolso de cada ʞɹɒuɒɹɘdʏɔ, para que uma nova flor de lótus floresça no lugar de suas mortes.

Enquanto Past ia de encontro com sua equipe e alcançava seu cigarro eletrônico no bolso em meio aos cartuchos, uma sinfonia de gotejos agressivos começou a tocar nos tetos metálicos que ainda sobrava daquele posto, sinalizando o começo de mais uma tempestade de chuva ácida. Naquela noite, a lua cheia cintilava o mais intenso dos brilhos enquanto assistia de longe um planeta terra que já praticamente não era capaz de abrigar nenhum ser vivo que não tivesse sido vítima de um sistema que levou a humanidade à beira da extinção.

— CARALHO Shogun, você fez muita merda. Levanta agora, a gente precisa capturar esse último caminhão custe o que custar. — Dizia Aurora enquanto aplicava uma injeção de Hydroadren no braço do seu melhor ʞɹɒuɒɹɘdʏɔ. Shogun havia sido projetado agressivamente da sua moto quando por acidente, perdeu o equilíbrio enquanto hackeava o último caminhão que faltava da frota.

Ágilmente, Aurora ajudou Shogun a subir na traseira de sua moto e ambos partiram em direção ao caminhão que já estava cada vez mais próximo da entrada na cidade onde os neocops se juntavam com reforços.

— Capitã, eu não sinto o meu braço direito e meu olho esquerdo não abre, eu prefiro morrer do que não conseguir nunca mais ver seu rosto lindo com meus dois olhos, me joga dessa moto e manda para Valhalla, por favor, eu simplesmente imploro, mas só com uma mão.

— Para de palhaçada cara, se você ta tão ferrado assim, se segura firme e assiste a mãe dar aula. Dizia Past enquanto acelerava cada vez mais rápido com a moto e se aproximava do último objetivo.

Como os outros caminhões, o último se encontrava em piloto automático, o crescento uso de tecnologia no sistema fazia questão de economizar cada átomo de recursos com o uso de AI, mesmo que isso significasse não utilizar humanos no sistema logístico de abastecimento das cidades. O resto da equipe já havia neutralizado os outros alvos e escoltava eles para o segundo ponto de encontro onde eles iriam esvaziar a carga em galões posteriormente usado para hidromel sintético que seriam contrabandeados para dentro da cidade em uma rota secreta.

— Alexa, assumir controle da moto. Dizia Past enquanto sacava Eros com uma mão e apontava para o compartimento de hardwares do caminhão.

Enquanto alinhava a mira ao alvo, Past trabalhava sua respiração e incorporava a calma de todos os dragões shaolin que ainda restavam na humanidade. Ela não era conhecida por errar tiros e não seria naquele dia que ela iria desperdiçar munição.

No estrondo do tiro que soava como uma orquestra de música clássica, o rastro roxo da munição trilhou o exato caminho da central de controle do caminhão e o projétil se instalou na dura liga metálica do exterior, liberando pulsos eletromagnéticos e iniciando o hacking.

— Alexa, agora ta na sua mão irmãzinha. Diminuir aceleração, habilitar freios e interromper as frequências de rastreamento, vou subir nesse caminhão e levar ele para casa agora mesmo. — Shogun, assume a moto e faz a escolta por trás.

Alguns minutos depois, quando Past e Shogun já haviam se encontrado com a equipe, compartilhavam um brinde daquela água refrescante, transparente e pura, como o sucesso da missão naquela noite.

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L. Lightfeather

“L’amor che move il sole e l’altre stelle.” ― Dante Alighieri, The Divine Comedy